sábado, 23 de agosto de 2014

Onde há fumaça ainda há um fio de esperança

Estava hoje na rua pela hora do almoço quando recebi um telefonema. No meio de nossa conversa a menção de que meu amigo de Gaza havia feito algum comentário no grupo a respeito dos panfletos que o exército de Israel costuma jogar de aviões sobre regiões que serão bombardeadas a fim de alertar a população civil para que evacue a área fez meu coração disparar, prevendo que ele estivesse passando por tal situação. Tentei contato por todos os meios de que dispunha, porém sem sucesso e saí em disparada para casa a fim de me conectar com mais qualidade. Felizmente tudo pareceu se tratar de um mal entendido e respirei aliviada. Deixe-lhe uma mensagem contando sobre o sufoco pelo qual passara, mas que já desfizera a confusão. "Estou enlouquecendo", pensei.

Pouco depois ele entrou em contato comigo, confirmando a prática dos panfletos e acrescentando que na semana anterior recebera uma ligação do exército israelense no celular dizendo que eles tinham como alvo células do Hamas e alertavam a população para que não colaborassem com o grupo. "Eles querem que nos insurjamos contra o Hamas, mas sabem que não podemos fazer isto". "É uma pessoa que telefona, ou uma gravação?", perguntei. "Gravação." Procurei tranquilizá-lo de que os ataques aéreos eram mais precisos do que aqueles por terra, e que ele não teria nada a temer. Percebendo seu ceticismo crescente, sugeri que mudássemos de assunto. Falamos dos sentimentos por uma garota, de sonhos de uma vida melhor, mostrei-lhe o trecho de meu último texto em que eu falava a respeito dele, ao que ele me respondeu no seu costumeiro tom bem humorado: "Uau! Desse jeito eu vou me amar!" Como sempre, lhe assegurei de que esta situação teria um fim e que ele se daria muito em breve. Não falei isto somente para ser simpática, mas por realmente acreditar que apesar dos tempos sombrios, eles não serão eternos.

Era sábado, meu dia de descanso, e tinha mais tempo para cuidar de alguns assuntos pessoais e dar mais atenção àqueles que me procuravam. Não consigo me dedicar a todos como gostaria. Recebo mensagens muito bravas daqueles que ficaram fora das minhas prioridades no momento e me percebo elencando dramas pessoais: se está em campo de batalha, envolvido com as negociações ou cuidando de milhares de pessoas, sobe para o topo da minha lista. Envolvidos com o diálogo entre as partes e questões pessoais muito urgentes vêm em seguida, para por último entrarem questões muito particulares e pontuais. Discussões teóricas, suposições ou simples exercício são desconsideradas e qualquer forma de desrespeito ou acusação infundada são sumariamente ignoradas. "Sim, estou enlouquecendo".

Um amigo israelense me relatou que desde o início da guerra, mesmo que menos carros se arrisquem nas estradas, o número de acidentes teve um aumento de 40%. Em um grupo do facebook que  reúne moradores do sul de Israel, onde procuro somente ouvir sem me manifestar, li relatos de como as pessoas têm medo de sair de casa para qualquer compromisso, e serem pegas desprevenidas no meio do caminho pelo aviso das sirenes sem conseguir chegar a um local seguro a tempo. Nesta região, devido à proximidade com Gaza, o sistema de proteção conhecido como Domo de Ferro tem sua eficácia diminuída. Esta semana, a primeira criança israelense morreu, atingida por um estilhaço de um míssil lançado pelo Hamas. A família, casal e três filhos estava no carro quando soou a sirene, e em uma escolha extremamente difícil, optaram por que cada um dos adultos pegasse um dos menores no colo, e que o menino mais velho de quatro anos os acompanhasse correndo. Não foi rápido o suficiente. Um dos integrantes do grupo relatou que tem o costume de deixar a porta de casa aberta, para o caso de algum estranho que esteja passando na calçada em frente no momento do alerta, possa abrigar-se ali. Outro relatou que os cachorros correm para os abrigos cada vez que escutam as sirenes, o que na região se dá repetidamente durante o dia e a noite, e alguém perguntou se os demais membros também brincavam com as crianças competindo para ver quem conseguia chegar mais rápido ao abrigo. "Estamos todos enlouquecendo".

Uma garota publicou uma mensagem angustiada no grupo. Seis mísseis haviam atingido a vizinhança de nosso amigo de Gaza. Ele teria tido tempo de em algum momento escrever-lhe uma mensagem, e alguns minutos mais tarde enviou outra, dizendo que estava vivo e recomendando que ela fosse dormir. Respiramos todos aliviados.

Pouco tempo depois notei que ele estava conectado, e lhe escrevi uma mensagem pedindo notícias, ao que ele prontamente respondeu, abrindo um abismo sob meus pés. Aos primeiros sinais de bombardeio, a família que vive apinhada em uma casa de um cômodo em um campo de refugiados, saiu correndo aos gritos, mas ele usava seus fones de ouvido e demorou uns poucos segundos para reagir. Foi o último a sair da casa que tremia e cujas janelas e telhado sofreram danos devido à explosão da pequena galeria de lojas distante cem metros dali. "Eu nunca havia visto algo assim em minha vida, o mundo ficou todo vermelho, o barulho era ensurdecedor". Machucou um pouco o braço, e correndo em meio à fumaça e escombros, um dos olhos sofreu com a poeira. "Queima como o inferno", disse. Extremamente deprimido e desacreditando de qualquer possibilidade de sobrevivência me implorou que eu parasse de falar qualquer palavra positiva. Sua dor era tamanha que qualquer sopro de vida lhe soava como uma heresia.

"Alerta vermelho, alerta vermelho", publicou a israelense que vive na fronteira com Gaza. O medo, a exaustão e a incerteza marcando a nova semana que se inicia. Na manhã de domingo, enquanto tomava seu café, as sirenes soaram na região. Não houve feridos.

E na dança em que os últimos encontram seu destino, não posso me dar ao luxo de não ser a última que ainda carregue um fio de esperança. Tenho que seguir fazendo o que comecei, não posso me permitir abandoná-los. Um outro amigo, acadêmico e ativista veterano em resolução de conflitos respondeu ao meu apelo por ajuda: "em se tratando destes líderes extremistas dos dois lados, você vai ter que se acostumar ao pior." Procuro uma brecha por onde possa passar a luz e minimamente sustentar uma esperança de vida.


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